Ruth Rachou, iluminando caminhos
Aos 94 anos, com uma carreira enorme e que moldou a dança em São Paulo, Ruth Rachou nos deixou essa semana
Em setembro de 2021, eu entrevistei Ruth Rachou pra um texto pra Enciclopédia Itaú Cultural, que ainda nem foi publicado. Foi um ponto alto de um ano muito esquisito. Quando ela aceitou a conversa, eu me enchi de orgulho e felicidade. O privilégio de conversar com uma pessoa dessas é sempre indescritível.
Conversando, Ruth me falou de muitos momentos da vida, muitas lembranças e pessoas queridas, trabalhos, propostas. Todo o tom do que ela dizia vinha coberto de calma, serenidade e doçura, como seus olhos. Todos os fatos ganhavam a dimensão humana, passavam dos grandes pontos da história da nossa dança, que eu conhecia por ter lido sobre, pra pontos muito pessoais. Experiências, desejos, vontades. Foi uma tarde frente à história, em corpo.
Ruth chega à dança muito cedo, acompanhando a irmã mais velha. Passa por algumas professoras, mas só com a mítica Olenewa é que começa a gostar da dança de fato, quando já tinha seus 17/18 anos. Seu primeiro trabalho profissional foi no Ballet do IV Centenário. Ali, ela já tinha 26 anos, era casada e mãe, enquanto a bailarina mais nova do elenco tinha apenas 14.
Ruth segue o caminho de outros tantos, passando do IV Centenário pra TV, para as escolas, e para outras companhias. É fundamental seu trabalho com Renée Gumiel a partir de 1964, e, mais fundamental ainda, a ida para Nova Iorque em 1967. Ao falar da sua formação, Ruth aponta alguns embates internos com o balé e a dança clássica. Um desejo por algo diferente. É nessa ida para os EUA que ela dá vazão a esse desejo, quando se aproxima de técnicas de dança moderna, notavelmente Graham, que se tornaria sua marca.
Volta ao Brasil pensando em criar uma escola pra disseminar aquilo que aprendeu. Seu estúdio, aberto em 1972 dura 43 anos e forma inúmeros artistas, moldando muito de como se faz e como se pensa dança em São Paulo. A escolha pelo foco em Graham era imediata para si: “é por aqui mesmo que eu quero que a dança moderna chegue no Brasil. É uma técnica difícil e exigente, você não dança só com o corpo, mas com a cabeça também. É preciso pensar e refletir sobre aquilo que se dança, e que faz o movimento”.
Sua escola foi um acontecimento. Se opondo às estruturas mais comuns do momento, focadas em festivais competitivos e de fim de ano, Ruth organiza uma proposta de experimentação, de discussão do próprio espaço da dança na sociedade, em cursos e formações variadas, com uma lista ilustre de professores que foram expoentes da nossa dança, como ela própria.
Nos anos 1980, essa mesma lógica é ampliada pra outras instâncias, como as mostras Inventores da Dança, e o curso Corpo Inteiro, fundamental pra consolidação de uma geração da dança contemporânea paulistana. Seu impacto também é sentido em instituições oficiais: Ruth foi assistente de Klauss Vianna na direção do Balé da Cidade de São Paulo, e também foi professora na Escola de Dança do Theatro Municipal, onde dedicou 20 anos ao ensino de dança moderna, numa proposta de mudança do pensamento sobre a formação em dança.
É difícil não olhar pra esse tamanho de história com um deslumbramento assustado. Ruth Rachou inventou e trilhou caminhos, defendeu novas formas de fazer e pensar dança. Todas as muitas homenagens já recebidas são justificadas. Com a calma de quem sabe o tanto que já fez, ela se despediu de mim dizendo que “aos 94 anos, eu canso muito rápido, e a cabeça mais rápido ainda”. Mesmo cansada, era brilhante, iluminada, e serena. Pra quem a ouviu, pra quem a olhou nos olhos, parecia impossível cansar de admirar. Tanto trabalho guardado em uma vida. Tanto ensinamento compartilhado. Tanta arte colocada no mundo. A imensa reação à sua partida testemunha quanta gente foi afetada por ela, e continuará a ser afetada, por outros vários 94 anos. Agradecemos.