Que dança é essa que fala tanto?
Até onde a dança tem muito a dizer, e a partir de onde a dança só está lá, enquanto alguém me fala o que tem pra falar?
Há dois anos, eu ensaio escrever uma continuação pra um assunto de uma coluna, lá de dezembro de 2020. Aquela, discutia os efeitos de fala no meio de cenas de dança. De lá pra cá, a questão continua me perturbando. Não pelo interesse do que acontece quando o bailarino fala, mas por causa da frequência com que eu tenho visto gente falando em cena, e da volta de uma dança verborrágica — dança que tem muito a dizer, mas em forma de texto.
O tópico é complexo, e causa problema. É sempre um passo muito curto entre a reclamação do excesso de fala e a percepção de alguma proposta de censura, como se houvesse algo que a dança pode ou não pode fazer. Como ponto de partida, considero que a arte pode tudo aquilo que os artistas entendem que nela cabe. O ponto seguinte já bate no outro, no público, em quem está do outro lado: a gente percebe um conjunto de elementos como parte de uma coisa, e outros elementos como parte de outras coisas.
A dança faz o que a dança quiser. E quem vê dança em algum momento pode sentir que perdeu a dança e entrou em outro campo. Alguns campos são próximos, têm fronteiras borradas: o teatro, a performance, a música, as artes visuais. Outros, já causam mais estranheza: o discurso, o panfleto, a propaganda, o conto, o romance, o texto…
Não é uma questão de assunto: não existe, em princípio, nenhum assunto que não possa caber na dança. É uma questão de forma. De como aquele assunto é apresentado. E se ele é apresentado com dança, ou com alguma outra coisa — seja lá o que for isso.
E é nesse lugar que o excesso de texto tem me pegado nas apresentações de dança. O interesse pelo texto nem sempre corresponde, numa obra, ao interesse pela dança. Quando a coisa fica desmedida, pra mim a receita desanda, e a gente perde alguma coisa da dança.
Eu não concordo que a dança precise se limitar ao movimento. Não é esse o pressuposto. O próprio processo da formação da dança cênica já trabalhava com a lógica de artes integradas, de múltiplos elementos artísticos operando por uma mesma proposta. Mas eu também acredito que todos os elementos em cena têm que ter qualidade. Não adianta ter luz boa mas cenário ruim. Texto interessante e dança sem construção. Figurino bem trabalhado, mas elenco sem preparo.
Mais que isso, eu acredito que todos os elementos em cena tem que encontrar o seu equilíbrio. Esse equilíbrio não é de balança, é de ecossistema. Ele não quer dizer a mesma medida de tudo, a mesma quantidade de tudo. Ele quer dizer tudo numa quantidade que faça as coisas funcionarem. Equilíbrio as vezes é uma xícara de arroz, três de água, uma colher de sal, uma folha de louro, dois dentes de alho. Não é três xícaras de tudo…
Claro, um equilíbrio pra fazer arroz não é o mesmo pra fazer dança. Mas o equilíbrio pra fazer dança também não é o equilíbrio pra fazer um panfleto, um manifesto, um discurso, uma carta. E tem gente pesando a mão violentamente na dependência do texto. Disso, fica uma pergunta que me parece relevante: por que a fala tem assumido um lugar importante na dança hoje?
Tem algo que precisa ser dito, e que tem algo que tem escapado do tempo da pesquisa coreográfica. Veja bem, o tempo da dança é outro. Tem gente que leva uma vida pra aperfeiçoar um jeito de falar sobre uma coisa. E, de repente, o mundo tem uma aceleração descontrolada. Milhões de assuntos por segundo ocupando a cabeça…
Será que a dança consegue dar conta do mundo de hoje? Eu sempre achei que sim. Direto eu vejo exemplos de como a dança reflete, transforma, apresenta, e faz pensar sobre a vida e o mundo em que estamos. Mas vira e mexe vêm umas temporadas que me deixam questionando: até onde a dança tem muito a dizer, a a partir de onde a dança só está lá, enquanto alguém me fala o que tem pra falar?